Antropocénica 3

Portugal 2024


Em continuidade com as reflexões decoloniais elaboradas na Antropocénica, algumas efemérides significativas apresentam-se em 2024 como horizonte simbólico e reflexivo neste terceiro encontro da série internacional, por exemplo, o centenário do nascimento de Amílcar Cabral (1924), o cinquentenário da Revolução dos Cravos (1974) e independência da Guiné-Bissau (1973 / 1974), os 530 anos do Tratado de Tordesilhas (1494), entre outras. Diante dessa oportunidade, valorizamos a memória de um líder revolucionário, cujo pensamento, atuação e influência foi essencial no contexto histórico das lutas pela independência das ex-colônias portuguesas em África; reconhecemos a centralidade da chamada Guerra Colonial (1961 – 1974) na Revolução dos Cravos que derrubou, há cinquenta anos, a longa e violenta ditadura fascista em Portugal; e revisitamos criticamente diversos imaginários dos imperialismos coloniais construídos na modernidade, desde referência a documentos, como o referido tratado entre os reinos ibéricos, o qual expôs as condições ao exercício de dominação territorial e humana por ambos impérios em expansão, pois passam a explorar tudo o "que até agora está por descobrir no mar oceano" e "que tudo o que até aqui é achado e descoberto, e daqui adiante se achar e descobrir por o dito senhor rei de Portugal e por seus navios, assim ilhas como terra firme", conforme a divisão imaginária do globo terrestre pela "linha direita de pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de norte a sul (...) a trezentas e setenta léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente". Desde antigos imaginários como este, expressos inclusive sob a forma de mapas, aos mais recentes, como as diversas produções da indústria cinematográfica do entertainment, propagam-se narrativas imperialistas, que atuam em seu tempo histórico como instrumentos de afirmação geopolítica, de posse e domínio do mundo, pois a esfera simbólica é parte essencial no exercício de poder da exploração em marcha.


Propomos como tema da Antropocénica 3 o título “Terra: Resistência e Reexistência”, no sentido de amplificar e enfatizar o foco crítico essencial da série durante sua jornada trienal: a compreensão dos problemas e impactos na Terra, transformada pela agência humana em processos múltiplos de exploração colonial, escravagista e extrativista na história, leva-nos a repensar a nossa existência no planeta, o que nos provoca ao activismo como forma potencial de resistência contra a hegemonia de um sistema predatório. As palestras proferidas por Amílcar Cabral em 1969 e publicadas sob o título Análise de Alguns Tipos de Resistência, instigam o novo encontro da série a reflectir sobre as formas de resistir, para superar a condição de vida imposta pelo capitalismo: resistir para propor formas de reexistir no mundo.


O título engloba dois dos conceitos centrais do pensamento e da ação de Amílcar Cabral, na teoria e na prática militante: Terra (1) compreendida não apenas enquanto entidade geológica, mas sobretudo em relação com os territórios africanos, libertados da opressão e domínio coloniais, quando formas de Resistência (2) revolucionária se configuraram e prevaleceram até a libertação do poder colonial português em 1974.


Ambos os termos – Terra e Resistência – são retomados no presente com ênfase na essência revolucionária, considerados nas lutas existentes das várias comunidades e grupos populacionais marginalizados e oprimidos, sobretudo em países do chamado Sul Global, marcados pela história da expansão colonial na modernidade, iniciada pelas navegações dos portugueses. Hoje vemos a importância da autodeterminação territorial para as diversas comunidades e etnias, como condição básica para garantir as suas existências. Assim, resistir torna-se um ato de luta pelo direito aos territórios ancestrais, habitados por sucessivas gerações no tempo, e ameaçados pelo avanço da exploração predatória capitalista da Terra e seus seres.


Ao mesmo tempo, porém, a resistência actual não pode ser concebida sem a urgência de uma mudança mundial de paradigma – uma mudança teórica e prática na forma como habitamos e existimos no planeta – que responda às necessidades locais e regionais de diversas comunidades em suas paisagens culturais. A resistência da Terra e a resistência dos povos que nela habitam e lutam para defender e sobreviver em seus antigos lugares é hoje, mais do que nunca, uma forma de resistência global, que ultrapassa as considerações meramente políticas dentro das fronteiras nacionais, para se pensar um futuro diverso, de respeito mútuo entre humanos e não-humanos, uma comunidade global entre seres, uma reexistência, não mais subjugada pela hegemonia capitalista.


Consideramos a actualidade dos conceitos Terra, Resistência e Reexistência para a necessidade de trespassar o antropocentrismo do Antropoceno e assim repensar a existência global de nossa espécie no planeta, os impactos de um modo de vida urbano, submetido ao capitalismo no mundo. Convocamos a reflexão sobre “as cenas do drama humano no teatro do mundo em mutação”, drama este que envolve todas as formas de existência. Desde o início da série, ao retomarmos a metáfora da Terra como Teatro, expomos a crítica ao poder da tecnologia, direcionado na modernidade para fins de domínio geopolítico em amplo sentido, isto é, o domínio de Gaia-Pachamama, reduzida a um mero teatro de operações capitalistas, em que todos os seres são envolvidos pela complexa dinâmica de transformação do mundo, um drama histórico com actores protagonistas e coadjuvantes do sistema predatório (corporações transnacionais e estados nacionais submetidos por forças políticas opressoras, reacionárias, neoliberais), com actores que resistem (organizações sociais críticas, personagens activistas, etnias oprimidas), com actores que sobrevivem marginalizados, com actores alienados, figurantes espectadores submetidos à sociedade do espetáculo, entre outras relações possíveis abertas por esta metáfora.


Neste sentido, especialmente convidamos o Teat(r)o Oficina para participar da Antropocénica 3, seja como forma de celebrar a própria memória de luta do dramaturgo, actor e director José Celso Martinez Corrêa, que exilou-se em Portugal há 50 anos (1974), seja como forma de afirmar a potência do teatro como expressão humana de criatividade e de crítica da realidade, como expressão cultural e política nas sociedades no tempo, dimensões valorizadas no contexto deste novo encontro da série.


Assim, nessa jornada coletiva de três anos, a Antropocénica quer propiciar o diálogo de ideias que identifiquem perspectivas de resistência dos seres como agentes políticos. Neste sentido, a reflexão que se deseja convoca a urgência da ação – e dos activismos críticos – tanto como estratégia de resistir, quanto como proposição para reexistir em paisagens profundamente transformadas pelo capitalismo na época de produção de ruínas no mundo em que habitamos.


Em breve o programa completo estará disponível na esfera abaixo:

Comissão Executiva

Antropocénica 3

Portugal 2024

Dirk Michael Hennrich

Filósofo . Centro de Filosofia . Universidade de Lisboa

Silvio Luiz Cordeiro

Arquitecto - Arqueólogo . Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património . Universidade de Coimbra