Antropocénica 3

Portugal e Cabo Verde 2024

POSTER

O BRANCO DOMÍNIO DA TERRA


Aterrissa o Arauto Investidor nesse Novo Mundo e assim brama: — Eu vim para trazer a Paz! Não para trazer a Vitória! A Paz Mundial, a Paz Universal! Com o Ouro desta cidade… GOLD! GOLD! My name is GOLD! [Maurício do Valle como John Brahms em A Idade da Terra, de Glauber Rocha]. Muito Ouro provém da atividade ilegal, clandestina, nos múltiplos garimpos devoradores da Floresta: contaminam rios com mercúrio, invadem Terras Indígenas. Há uma variedade de Ouro pelo Mundo, por exemplo (e talvez o mais cobiçado), o Ouro Negro... Explora-se ainda, com vigor crescente (não importa as Mudanças Climáticas), como a desejada exploração petrolífera na Foz do Amazonas.


A Geo-Necro-Política do Sistema Econômico vigente se exerce pelas Guerras, com testas de ferro genocidas promovidos por Potências Capitalistas Nucleares.


A Techno-Sphera é o Planeta Urbano, cuja história se releva pelo domínio colonial, com raízes que penetram a memória das civilizações, quando o extrativismo — de matérias e de seres — era exercido como fator essencial para o poder concentrado nas mãos das elites guerreiras de soberanos divinizados: guerra e civilização caminham juntas [Lewis Mumford]. Mas na Idade Moderna, a Idade da Terra é comprimida pela época de produção de ruínas: o tempo é o instante, o não-tempo da ilusória vida espetacular [Guy Debord] vivenciada em todos esses não-lugares da paisagem urbana hegemônica contemporânea. Nessa época, o extrativismo é pleno: tudo se devora, o consumo é total. O relógio regula o ritmo, devora o tempo: os ponteiros giram, a hélice da máquina fere. A Terra submetida ao capitalismo onipresente reproduz o giro incessante da volandeira, símbolo maquínico, roda-engrenagem do Progresso da Ordem que marcha e ativa o engenho técnico da moenda global.


Gaia é envolvida em Transe provocado pelo poderio das Elites Imperialistas Brancas, predadoras globais. Lembrem dos impérios da cristandadeem expansão nos séculos XV e XVI, elites herdeiras da antiga cultura patriarcal. A imagem foi construída a partir do recorte de uma pintura quinhentista de Andrea del Sarto (c. 1528): extraída de seu imaginário sacro original, ela assume outro sentido nesse cartaz: agora as mãos representam três gerações distintas, a indicar a sucessão, a continuidade, a reprodução do poder; mãos masculinas, alegoria dos que dominam e escravizam. A Mulher é invisibilizada: a machosphera supremacista quer predominar, quer manter a desigualdade para explorar. Os seres humanos escravizados, chamados de Negros da Terra em documentos coloniais, estão ausentes na imagem, pois foram todos marginalizados no devastador e violentíssimo processo que enquadrou a vida sob um Sistema Predatório: a história da exploração capitalista é a história das múltiplas formas de escravizar os seres. A Sphera TƎRRÆ foi esquadrinhada, medida, expressa no planisfério, desenho técnico do Mapa Mundi, assim como tudo foi submetido à medida-vontade humana: o Homem Vitruviano [De Architectura Libri Decem, de Marcus Vitruvius Pollio], como representado no célebre desenho de Leonardo. Os racistas nacionalistas supremacistas delirantes subjugaram diversas etnias submetidas às mais variadas medições 4N7ROPØMƎ7R1C45, principalmente de crânios (cada exemplar "coletado" constitui a memória da violência colonial) 💀.


A imagem é reveladora do patriarcado dominador da Grande Sphera Azul (nossa morada coletiva cósmica ⇀ κοσμικός), possuidor, violador de suas riquezas, de seus habitantes: a cruz dourada (GOLD!) assinala o domínio exercido a Ferro, Fogo, Sangue e Símbolos, sobre todos os seres, humanos e não-humanos. Deus e o Diabo na Terra do Sol sob o Antropoceno. Humano: personagem plural, protagonista de seu próprio drama, sujeito ambivalente, ambíguo, criador e destruidor, que elabora e interage em sua cena. Cantam os Titãs: — Ninguém sabe falar Esperanto / Miséria é miséria em qualquer canto / A morte não causa mais espanto / O sol não causa mais espanto / Miséria é miséria em qualquer canto*. Faça Arte, Não Guerras. Fui baixista de uma banda de rock nos anos 90: depois de muito tempo, ouvi Noturna [música minha, letra do Piu, arranjo PB]: — Qualquer outra noite vai passar / Lindo dirigível de ilusões / Vai preencher seu céu / Aquecer seu mar / Vai dar vida a tudo o que sonhar... O ser-indivíduo comum, explorado típico da sociedade contemporânea, oprimido pelo SY$TEM, depara-se com o vazio do desencanto: para (sobre)viver, sem tempo para sonhos, hoje corre atrás de grana.


Vista de relance, a imagem sugere um símbolo solar… Lembra Corisco a nos encarar com seu punhal em frente [o cangaceiro interpretado por Othon Bastos, no cartaz de Rogério Duarte para o filme de Glauber]. Mas é o fogo na Terra. Cenas incendiárias avermelham os céus: a tragédia de sustentar o mantra capitalista do Crescimento Econômico se revela em qualquer canto: degelos dos glaciares, oceanos quentes, territórios inundados, desertos recentes onde antes existiam florestas, que foram queimadas. Os raios são foices. As foices simbolizam as colheitadeiras da indústria do Agro é Pop. Elas aqui simbolizam a violência e a morte. Mas também são foices a simbolizar a memória da  resistência do campesinato? Como lutar no mundo do  Branco Domínio  ? A Coroa Raiada da (Branca) Liberdade é a Neoliberalidade Imperialista Militar, devoradora da Terra.


A metalurgia é um símbolo revolucionário da civilização: a espada, a lança, a moeda. A eletrônica elevou o potencial humano. A elite eleita quer colonizar outras Spheras: para isso aprimorou o míssil e assim construiu o foguete espacial. A robótica e a telemática expandiram os horizontes, mas a instantaneidade aprisionou o humano na tela eletrônica. METROPOLIS, cidade expandida, imagem reveladora do processo que consubstancia o Planeta-Urbe, é o maior artefato construído socialmente por humanos: a cultura urbana é o clímax civilizatório. O risco fundador, como disse o erudito arquiteto, nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz [Lúcio Costa em sua Memória Descritiva do Plano Piloto de Brasília]. O modo de vida urbano contemporâneo é voraz: ambiente artificializado ao extremo, a cidade se expande, altamente poluidora, com impactos a transcender fronteiras. Esse modo expressa o proveito de pouquíssimos, à custa da pobreza das multidões: — Há 500 anos que meus escravos estão construindo essa Pirâmide; Na verdade o que existe é o Mundo Rico e o Mundo Pobre [Maurício do Valle como John Brahms; e Glauber Rocha, ambos em A Idade da Terra].


Enquanto tais ideias se movimentam para essa composição de arte humana (concebida por este que aqui escreve, não há qualquer uso de algoritmos de IA celebrados por múltiplas variantes da religião transumanista) duas cores, usadas na bandeira de uma violenta ideologia sombria, assumem-se aqui em Luta contra o delírio supremacista, racial, nacionalista, contra genocidas e promotores do ecocídio na Terra: viva o Urucum e o Jenipapo da pintura corporal indígena; a Luta contra os fiéis adeptos do Branco Domínio da Terra, que avançam com o extrativismo pleno, torna-se mais forte ao lado da secular Luta dos Povos Originários e de todos os povos oprimidos. Juntos afirmamos que eles NÃO PASSARÃO.



Itanhaém (antiga vila colonial na orla atlântica meridional do Brasil)

1º de Outubro de 2024


Silvio Luiz Cordeiro



* Miséria, música de Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sérgio Britto no álbum dos Titãs intitulado Õ Blésq Blom (1989), expressão em língua inventada por Mauro, repentista no Recife (Pernambuco, Brasil), cantador nordestino junto da sua companheira Quitéria. Como revela Branco Mello, vocalista da banda, em suas palavras durante um ensaio transmitido pela TV Cultura para divulgar o novo álbum recém lançado: — Eu fiquei sabendo que o Mauro, que é o autor dessa frase, um cara que faz rock and roll lá na Praia da Boa Viagem, ele falou que Õ Blésq Blom é "os antigos seres que andavam pela Terra, os primeiros seres que caminhavam pelo Planeta"; isso é Õ Blésq Blom.